Torrentes Espirituais – Jeanne Guyon

Pequeno excerto extraído (mais precisamente o capítulo 6) de sua obra clássica “Torrentes Espirituais” de Jeanne Guyon. Você pode adquirir o livro por esse link aqui

Torrentes Espirituiais – Madame Guyon

CAPÍTULO 6

Você se surpreende com o que for dito a seguir.

No exato momento em que em suas viagens, como uma torrente, o cristão parece estar morrendo, prestes a exalar o último suspiro, repentinamente ele se recupera e adquire novas forças.

É como uma lâmpada que exauriu seu combustível. Justamente antes de ela apagar-se, a chama de repente ressurge. Contudo, mais cedo ou mais tarde ela se extinguirá. Haverá uma recuperação, mas poderá não durar muito tempo.

O rio agora está completamente congelado. Parece que não há nenhum movimento. Até mesmo uma leve calor faria com que se considerasse aceso.

Estamos olhando aqui para um amor que é dócil, mas parece muito frio.

Tu nos ama apenas para nos abandonar? Tu feres a alma, para depois fazer com que ela corra atrás do Autor da ferida. Tu nos atrai a Si. Se revela a nós. Então, quando nos vê reduzidos ao ponto de exaurir-nos, havendo perdido todo o fôlego com o qual corremos, Se mostra por um momento, a fim de que recobramos a vida. Você parte novamente, e a morte se torna uma coisa mais severa.

Oh! Amor cruel, oh! Inocente Destruidor, por que não nos mata de uma vez?! Você concede vinho à alma que está morrendo! Outra vez lhe concede vida, mas depois torna a arrebatá-la.

É este seu passatempo? Tu parece curar a ferida, mas depois inflige uma nova. Na morte natural os homens morrem, todavia, uma única vez, e a dor, portanto, cessa. Quando o criminoso morre, todos ficam satisfeitos, porque o destruíram, porém, uma vez só. Tu, ó Senhor, que sem misericórdia nos tira a vida milhares de vezes, e depois no-la concedes de volta.

Oh! Vida, vida que não conseguimos perder a menos que haja muitas mortes! Oh! Morte que não é perigosa, e que não conseguimos alcançar, a menos que percamos tantas vidas…

Senhor, Tu chegarás ao fim desta viagem; mas qual é o proveito disso? Quando o corpo morre ele perde todo o sentido. Não é assim com a alma. Ela continua sofrendo, mesmo após a morte. Há um vazio que é muito mais doloroso que a morte…

Aqui está uma situação que tem causado muita perplexidade em muitos cristãos: ver um amigo que tem vivido uma vida santa – até mesmo comparável à dos anjos –, e depois vê-lo passar por infindável aflição. Os homens não têm explicação para tanto, pois ela não está de acordo com sua teologia nem sua compreensão a respeito de Deus.

Este período na vida daquele que busca pode durar muito tempo. Consequentemente, quando encontro alguém que fala a respeito de fazer um rápido avanço não posso deixar dizer que essa pessoa pode ser uma pessoa ingênua. É verdade: tais pessoas podem parecer perfeitas! Seu relacionamento íntimo com o Senhor é sólido. Mas aqueles que pensa que passaram este período ao qual me estou referindo – estão equivocados. Poderão despertar um dia e ficar admirados ao descobrir os caminhos de Deus que jamais sonharam poder existir.

Eu faria uma pausa aqui para dizer que quando você é um jovem cristão e está realmente fazendo muito progresso, poderá sentir que está mais adiantado do que de fato está! Tome cuidado para não aplicar a si mesmo um estágio de crescimento cristão que, na verdade, não alcançou; nem vá acrescentar à sua experiência algo além do que ela de fato possui. Este é um alçapão para vários cristãos.

Não procure, por exemplo, despir a alma de todas as coisas, a menos que Ele o faça. Isso deve ser deixado somente para o Senhor fazer. Tentar você mesmo é perigoso. Mas esta é uma lição muito difícil de aprender. O Senhor tirará de você exatamente o que deseja. E ele o fará de um modo perfeito. Procurar fazer isso você mesmo é atrapalhar o trabalho divino.

Há muitos cristãos que começam a aprender um pouco mais sobre o andar íntimo com o Senhor; ouvem alguma coisa a respeito de a “alma ser despida de tudo”, e dispõem-se eles mesmos a realizar isso, muito embora afirmem que estão deixando que o Senhor o faça. Não há progresso nisto. Ele nem nos empobrece, e ele assim o faz a fim de enriquecer-nos. A pessoa que procura realizar isto sozinha não ganha nada.

Mesmo procurando esvaziar-se, empobrecer-se e mortificar-se, é na realidade procurar preservar a vida. Sim, você está de fato preservando uma porção dela que deve ser renunciada. Você está fazendo isso. É um erro medonho que denota muito da própria vida, e é muita cegueira!

Você perceberá que se desejar apagar uma candeia deve fazer duas coisas: extingui-la ou simplesmente evitar realimentá-la com óleo. Deste modo ela se apaga sozinha. Mas se em sua escolha em deixar a candeia apagar-se, de tempos em tempos você colocar óleo nela, ela jamais se apagará.

Deixe o Senhor fazer estas coisas. Se quando Seu despojar chega a você e você procura colocar apenas um pouco de óleo nela a fim de tornar o sofrimento mais confortável, você estará perdendo tempo à toa, e estará destruindo o trabalho do Senhor em sua vida. Você está somente retardando a morte. Está procrastinando um inevitável funeral. Se não lutar contra a morte que o Senhor escolheu para certas partes de sua natureza, então essa morte resultará em vida.

Alguns, quando estão se afogando, lutam para alcançar a superfície. Eles se apegar a qualquer coisa que possam encontrar e quando estão exaustos afundam. Você é um daqueles que lutam ao extremo para que não venha a perecer? Você morrerá somente por falta de força! Algumas vezes o Senhor entorpece as mãos e os braços, ou mesmo os corta fora, obrigando-os, desta maneira, a mergulhar até o fundo. Você grita com toda a sua força, porém em vão.

Você está face a face com um Deus que não tem misericórdia; ainda assim é por sua grande misericórdia que não é obrigado a dar qualquer coisa à natureza humana, em suas últimas agonias, em seu afogamento.

E mais uma vez eu endereçar àqueles que estão procurando guiar outros cristãos. Não recomendaria socorrer aqueles que chegam a este estado. Você não pode contribuir para o trabalho de morte dentro do coração deles. Tampouco pode libertá-los das poderosas mãos do Mestre.

Se esta pessoa é uma pessoa que está verdadeiramente buscando o Senhor, e de fato se entregou a ele, o amor nem mesmo sepultará aquele que está morrendo.

Se o cristão então persistir em seu curso, ele encontrará a cruz repetida vezes. Parece até que ela se multiplica. Se você acompanhar este cristão por muito tempo em seu mergulho para baixo, você perceberá que ele parece ficar quase sem sensibilidade para o sentido mais nobre do tudo aquilo que é espiritual. De fato, o cristão decide acostumar-se à sua dor, à sua impotência com a perda do favor de Deus. Ele até mesmo poderá pensar que Deus removeu dele seu favor, justamente por causa de sua própria fraqueza. Não há nenhum pensamento ou esperança de ainda voltar a sentir alegria. Encontrar alguns cristãos vitoriosos ou favorecidos pela graça de Deus, agora, é simplesmente uma dor redobrada. O cristão cai na profundeza do nada.

Aquilo que eu mais temia me sobreveio” (Jó 3.25).

“O que é isso?” – grita ele – “para perder Deus para sempre, sem a esperança de voltar a encontrá-lo? Ser privado de todo amor por todo o tempo e toda a eternidade? Não mais ser capaz de amar aquele que é tão amável?” Ah, este é o lamento da alma, o salmo do cristão (aparentemente) abandonado.

O cristão verdadeiramente crê que isso é o que lhe acontece. Não entende que jamais foi tão intensamente amado quanto agora; nem jamais amou com tanta pureza. Ele poderá haver perdido o vigor, o senso e o poder do amor; mas não perdeu a essência do amor.

Ele jamais amou tão verdadeiramente.

Claro, a pobre alma não consegue crer em tudo isso. Todavia, isso é um simples fato. Você percebe que este cristão não pode existir sem amor. Se ele não amasse a Deus, ele amaria qualquer outra coisa. Entretanto, aqui está alguém que não sente prezar em mais nada! Preste atenção nisto: ele não abandonou a corrida, como muitos cristãos fizeram. Ele crê que está morrendo sem Deus; contudo, Deus é seu lamento, seu único pensamento. Mas ele não enxerga isso.

É verdade… ainda há problemas com o pecado e com o mundo, porém isso lhe causa grande tristeza. Ele se revolta contra a luxúria e contra suas faltas involuntárias, e as considera pavorosas. Mal ele se lava, volta atrás, àquilo que considerava ser repugnante.

O cristão simplesmente não sabe mais o que fazer. Antes ele era autoconfiante, apropriava-se dos dons de Deus. (Havia simplesmente caído no amor-próprio). Se houvesse de fato procurado ir mais longe e mais profundo, se estivesse tão enriquecido, teria sido poupado de tal carga. Na verdade, se ele não houvesse perdido tudo (todas as riquezas que obteve em seu relacionamento com o Senhor), seu demasiado temor de perder essas riquezas ter-lhe-ia dificultado correr este curso. Mas é inútil, tudo agora está perdido!

Esse cristão é tal como outrora – uma noiva bonita cujo noivo estava encantado. Agora ela se encontra nua e esfarrapada. Que lhe aconteceu?

Aqui está a explicação. O Senhor viu a beleza dessa pessoa, contudo também viu que ela se entretinha com seus ornamentos deleitando-se neles. Ela pensava que O estivesse contemplado, mas não era verdade. Ele retirou a sua beleza. As riquezas desvaneceram-se ante os olhos da noiva.

Esteja certo disso: na abundância do bem e dos dons que Deus nos concede, nos deleitamos em nos contemplar a nós mesmos.

Mas vem a hora, quando a noiva percebe que é bonita apenas com a beleza do Noivo. Ela deve aprender que quando a beleza que é de Cristo se vai, a beleza que é deixada para ela é certamente assustadora.

Em seu relacionamento inicial ela não teria seguido seu amor pelo deserto ou aonde quer que ele fosse. Estaria temerosa de estragar sua beleza e perder suas joias. Oh, ele não teria tomado sua beleza, seus dons, suas capacitações, a fim de arruiná-la. Ele lhe arrebata a beleza. Por quê? Por uma beleza mais graciosa – a beleza do Noivo. Ele não se importa com que aparência ela é deixada quando sua própria beleza vai.

Neste tempo o Senhor está removendo os adornos, os dons, o favor. Parece que ele veio primeiro e removeu a graça, os dons e os favores, isto é, o amor que poderia ser sentido e perseguido. Sim, estes se retiram primeiro. O que ele concedeu, de repente ou gratuitamente, ele agora leva embora – de repente ou gratuitamente.

Talvez neste ponto o cristão não esteja tão consciente das perdas ou riquezas, e sim do abandono por parte do Senhor. Demasiado confuso por um sentimento de desmerecimento, o cristão não profere com palavras e oração: “Senhor restitui-me de novo o que outrora me concedeste”. Este cristão sabe que não merece uma resposta positiva para esta oração. Tudo que ele pode fazer agora é contemplar o Senhor e sofrer.

O silêncio é interrompido apenas pelas lágrimas; contudo, ele sente que até mesmo estas lágrimas podem estar ofendendo o sentimento do Senhor. Ele de bom grado renunciaria a qualquer coisa, e nunca voltaria a tocar nos dons, se ao menos soubesse que não ofenderia o Senhor. Muitos desses cristãos fariam qualquer coisa para agradar seu Deus, apenas para despertar um dia e entender que isso também é desagradável.

Quando finalmente o Senhor retorna, após o cristão estar tão consciente da sua fraqueza, pecado e baixa condição, ele mal pode acreditar que o Senhor regressou.

Muito embora esteja certo de que, quando ele retorna, não devolve as antigas riquezas. Agora, entretanto, o cristão não está mais preocupado com isso! Ele está contente simplesmente por poder afagar seu Amado.

Há, entretanto, um estranho paradoxo aqui. Se a presença do Senhor permanecer por muito tempo com o cristão, este irá mais uma vez introduzir-se no esquecimento; isto é, ele se esquecerá dos tempos difíceis. O senso de seu infortúnio desaparecerá; ele uma vez mais viverá sob as demonstrações de afeto e amor por parte do Senhor. Chances há, então, se de fato o Senhor regressar trazendo suas riquezas e permanecer por um bom período de tempo… desaparecerá Ele uma vez mais!

Se você quiser saber se é um cristão fraco ou forte, a resposta é: nem um, nem outro lhe fará bem algum. Se você for um cristão fraco, então estas últimas coisas são muito difíceis de abdicar; e o despojar-se demora muito… Se você for um cristão forte, então se verá lutando constantemente, embora possa em pouco tempo esgotar-se, uma vez que cedo estará exausto.

Um dia você olhará para trás, ao gesto de lhe tomar o Senhor as coisas da sua vida, e ficará espantado diante do seu grande amor e a maneira talentosa pela qual assim procedeu. A alma estará cheia de si mesma, o cristão tomado de amor-próprio…

Se o Senhor não tratar conosco desse modo não haverá em hipótese alguma real progresso.

Talvez você pergunte: “Se os dons são tão perturbadores, por qual motivo Ele nos concede?”

Ele nos concede dons em razão de Sua grande bondade; tira a alma do pecado por meio deles, retira o cristão do apego às outras coisas da criação, e os utiliza para conduzi-lo de volta a Ele. Se Ele não nos concedesse Seus dons, Suas riquezas e Suas bençãos, a alma seria eternamente uma criminosa.

Todavia, havendo sido agraciados com os dons que Ele tão generosamente nos concede, não entendemos que somos desprezíveis; nem percebemos que estamos tão envolvidos em admiração própria. Voltamos nossa atenção para fora do nosso Senhor, para os dons.

Do doador ao dom nos movemos. O amor-próprio é uma coisa profundamente arraigada em todo o nosso ser. Os dons do Senhor servem apenas para aumentá-lo. Eles talvez irão livrar-nos do amor ao mundo e às outras coisas, e servirão para nos conduzir ao amor de Deus; entretanto, não afastam, de modo algum, nosso amor e encantamento por nós mesmos. O cristão se apropria do amor de Deus para o próprio deleite. Talvez ele esteja também demasiado familiarizado com o Senhor, esquecendo-se do tempo da escravidão, do qual foi liberto, e de mais uns milhares de coisas.

Então por que o Senhor não nos livra de uma vez por todas? A resposta está inteiramente no Senhor; e se você faz esta pergunta e fica ofendido por não obter nenhuma resposta, então você poderia também optar por não empreender a jornada. Se conhecer as respostas para tais perguntas lhe é absolutamente necessário, então esqueça a jornada. Você jamais a fará; pois esta é uma jornada de coisas impossíveis de conhecer previamente – perguntas não respondidas, enigmas, coisas que não podem ser concedidas, e sobretudo injustiça.

O cristão está agora num lugar onde os dons celestiais do Senhor lhe têm sido tirados. Percebemos que ele está reconhecendo seu amor-próprio, e começando a compreender que não é tão rico quanto outrora imaginava. Ele percebe que tem tido a mais alta veneração por si próprio, que jamais imaginara ter, e que essa riqueza pertence apenas ao Noivo, não à noiva. Ele entende que fez uso indevido dessas coisas que o Senhor lhe concedera, e lhe diz que se contentar, se jamais as devolver! Ele apenas solicita ser enriquecido com as riquezas de Cristo.

Para alguns cristãos poderá haver até mesmo alegria perante a perda dos dons de Deus. Por quê? Porque eles sentem que têm sido aliviados do muito que os vinha estorvando. Eles estão ligeiramente equipados para o progresso espiritual.

Pouco a pouco vemos este cristão ser despido. É uma coisa gradativa. Ele não se importa com suas perdas, porque servir Senhor sem adornos, dons e serviços.

O cristão está agora esperando somente por um estado sereno. É meu dever dizer-lhe que o estado de serenidade poderá não durar muito. O Senhor poderá vir a desnudar mais ainda. E se houver mais desnudamento a pobre alma não saberá o que fazer.

“Ai de mim”, clama o cristão. “Perdi todas as riquezas que me concedeste – teus dons, e mesmo teu doce amor. Mas ao menos pude realizar alguns pouco atos externos de virtude, alguma caridade. Vais me deixar agora despido? Se eu perder minhas vestes e for encontrado nu, isto te trará reprovação, ó Senhor! Será que concordarás com tal perda?”

Consentimento ele de fato o dá.

Você ainda não conhece seu próprio ser. Você acredita que suas vestes são suas, próprias, e que pode fazer uso delas como bem entender. Mas o Senhor lhe diria: “O que você está realmente dizendo é: ‘Senhor, eu ganhei estas vestes com alto custo, por intermédio das coisas que fiz para ti, o trabalho qual me recompensaste…’”

Perca-os, querida alma.

O cristão agora não mais está interessado em coisa alguma. Não há nenhum interesse em obras, e certamente nenhum poder para realizá-las. Antes poderia ter havido revolta e dor. Mas agora há somente impotência.

O cristão começa a perder sua lembrança dos dias mais belos e melhores. Novamente, ao presenciar ainda mais perdas, ele acredita que são o resultado de alguma falta grande dentro. Ele realmente não sabe que dizer na presença de seu Deus. Pouco a pouco entende que nada possui de seu, absolutamente nada: tudo pertence ao Noivo. Passa a passo lhe sobrevém um total descrédito de si mesmo, e gradativamente o amor por si mesmo vai morrendo.

Mas uma coisa é cessar o amor-próprio; outra é odiar-se. O cristão relembra quando considerava uma coisa ínfima esta questão de ter removidas todas as coisas. No entanto, ele se vê como uma pessoa que jamais foi digno (nem antes, nem agora, nunca).

Percebe que jamais foi no passado, nem será no futuro digno de vestir a gloriosa veste branca do casamento. Ele é finalmente exposto ao que é – nu. Envergonhando por encontrar-se desnudo, ele se sente arruinado. Mal ouse penetrar na presença do Senhor.

“Finalmente” – pensa ele –, “se a minha nudez pudesse ser uma coisa privada e não privada e não pública…” A admiração se foi. O mundo não apenas não está prestando atenção a este cristão (ou chocado ante sua impotência), como também o está esquecendo.

Que queda inacreditável esta pessoa experimenta! O cristão fica duplamente confuso porque sabe que merece tudo que lhe tem acontecido. Ele tem esperança de ser vestido novamente, mas não sabe que fazer para que isso aconteça.

Aqui, está um cristão que uma vez acreditou estar adiantado em questões de maturidade quanto às coisas espirituais, chegando até mesmo ao ponto de perfeição em questão de serviço. Agora ele mal pode suportar a lembrança dos dias quando tais pensamentos lhe ocuparam a mente. Contudo, aquele foi o dia em que as vestimentas escondiam a verdadeira pessoa. Agora não há nada.

Portanto, o que estamos percebendo aqui? Um Senhor que despiu todas as coisas, e que até mesmo tornaria a beleza em feiura… e depois destrói a feiura. Certamente, isso é o fim! Mas não é!

A esta altura o cristão se submeteu ao despojamento de dons, graças, favores, desejo de servir, capacidade de fazer o bem, de jejuar, ajudar o próximo. Ele perdeu todas as coisas, exceto aquilo que é divino. Terá de fazer isso também?

É uma coisa pavorosa, encontrar-se num estado no qual a pessoa é despida dos dons e da graça de Deus. Ninguém, que não haja vivenciado esta experiência, creria nisso.

Que estou dizendo? O cristão perde virtude após virtude. Ele as encontra de novo quando elas são Jesus Cristo. Parece que agora a alma perdeu tudo; isto é – tudo, exceto a beleza do Senhor.

É difícil explicar; o cristão sofre todas essas coisas até agora, e permite que elas sejam destinadas à perda. Contudo, ele tem sido presunçoso, julgando que ele é quem tem consentido nisso tudo. Ele tem enfrentado ocasiões para revoltar-se, mas não se tem rebelado. Ele perdeu toda a sensação da presença de Deus. No entanto, não se rebela contra o Senhor. Como no Cântico dos Cânticos ele pode dizer:

Os guardas encontraram-me e feriram-me”.

Este cristão vê corrupção em si mesmo, do modo como Jó o viu. Ele se sente clamando, como Jó o fez. “Oh, seu pudesse me esconder no inferno até que a ira de Deus passasse…” A alma se sente esmagada ante a pureza de Deus. Ele vê a menor porção de imperfeição como um enorme pecado. Contudo, é sentimento geral de suas imperfeições. Não são faltas pessoais que o estão sobrecarregando; é, sim, sua indignidade. Apesar de todas as suas faltas, ainda há a possibilidade de ele ser capaz de enumerá-las; seus motivos e seu coração nunca foram tão puros.

Então, que falta há aqui? Somente esta: o relacionamento cristão para com o Senhor se volta para seu próprio bem-estar.

Ele chegou a um estado de perfeição? Absolutamente. Qual é sua relação com o pecado? Frequentemente ele só reconhece o que faz como pecado após havê-lo cometido. Nesse momento ele clama ao Senhor por socorro e por perdão.

No entanto, o cristão agora está tendo a experiência do sentimento de odiar a própria alma. Ele está começando a odiá-la porque está começando a conhecê-la. Todo o conhecimento que um homem possa alcançar no mundo, e tudo que possa ler, e toda a gama de informações que possa adquirir o faria odiar a própria alma.

Odiar a si mesmo é a única experiência que dá à alma um conhecimento da infinita profundidade de sua miséria.

E esse conhecimento espiritual é o único meio para se chegar à verdadeira pureza. Impurezas espremidas por outros meios não são removidas, apenas escondidas.

O Senhor começa agora a perscrutar essas impurezas radicais. Ele está à procura de coisas que estão presentes devido a um profundo e invisível amor-próprio.

Vamos ilustrar deste modo: aqui está uma esponja repleta de toda sorte de impurezas, e você a lava. Possivelmente você não pode limpá-la por dentro, a menos que seja espremida. A lavagem não removerá toda a impureza. Somente quando ela é realmente espremida é que a armazenagem interior da corrupção e impureza aparecem. E isso é o que o Senhor faz ao cristão. As coisas mais ocultas são aquelas que Deus está à procura.

O cristão pensa que está encontrando um novo pecado em sua vida. No entanto, é exatamente o oposto que acontece: o que está sendo descoberto é algo que tem estado lá, o tempo todo encoberto. Agora é descoberto e visto porque está removido!

Contudo, o cristão invariavelmente acreditará haver caído em novas profundezas da carnalidade e pecaminosidade. Quando aquilo tão impuro, tão oculto, tão profundo, após haver estado lá dentro por tanto tempo, chega finalmente à superfície, ele mesmo imagina haver adquirido somente agora esses pecados e impurezas.

O Senhor não está preocupado com inconveniência que você venha a sofrer, enquanto vê essas coisas horríveis, quando vêm à superfície. Ele sabe como são assustadoras; não há nenhuma outra maneira de lidar com o amor-próprio.

Até agora um profundo e oculto amor por si mesmo tem estado encoberto com belos ornamentos. Quanto mais profundamente o amor-próprio penetrou em seu ser, quanto mais oculto esteja, mais destruição causa. E por quê? Porque o prejuízo não é conhecido, e todos os seus aspectos externos parecem nobres.

A própria descoberta destas coisas ocultas é, em si mesma, uma experiência purificadora! A alma precisa descobrir o que está dentro dela. A natureza inteira necessita ver o que realmente ela é, e com que se parece, exatamente bem no fundo.

Também deveríamos saber que muitos irão olhar para você com ar de espanto, porque o que você agora considera faltas grandes eles sempre consideraram pontos fortes e virtudes da vida cristã. Eles também terão a convicção de que com a sua perda você estará perdendo a virtude, em sua essência de ser.

Outros podem conhecer o exterior e suas faltas superficiais. Aquelas faltas que Deus perscruta nas partes mais secretas de sua alma são questões que passam por perfeição aos olhos humanos. Prudência, sabedoria, e milhares de outras coisas; eles lhe aconselham carinhosamente nutri-las.

Muitas almas ilustres têm inúmeras virtudes nobres. Entretanto, o cristão ao qual estou referindo não possui absolutamente nada. Tudo que ele tem é fraqueza sobre fraqueza, impotência sobre impotência. Um outro cristão poderá ir além do que vê, e apoiar-se em coisas grandes. Mas esse cristão se move não pelo que possui internamente, mas por aquilo que tem sido removido dele internamente.

Ele perdeu tudo.

O que os outros cristãos fazem é admirado; o que este faz é pura falência. Qualquer coisa que faça é inconveniente. Tudo quanto toca põe a perder. Ele não é bem-sucedido em nada, nem é aprovado em coisa alguma. Aonde o Senhor o está levando? A descobrir que toda a felicidade se encontra no Noivo, nenhuma nele mesmo.

Você jamais poderia crer, a menos que experimentasse aquilo de que a natureza humana é capaz, quando entregue a si mesma. Algumas vezes sinto que nossa própria natureza, entregue a si mesma, é pior que todos os demônios juntos.

Contudo, não tenciono deixar aqui a impressão de que este cristão, neste estado miserável, esteja abandonado por Deus. Absolutamente. Nunca antes este foi tão plenamente sustentado pelo Senhor.

Todavia o cristão se encontra num estado empobrecido, e a melhor coisa que lhe pode acontecer é que Deus não demonstre por ele nenhuma piedade! Quando o Senhor deseja ajudar o progresso de um cristão Ele o deixa até mesmo correr em direção à morte. E quando há trégua e o cristão se alegra uma vez mais, essa trégua e essa vida que lhe é dada lhe são concedidas em razão de sua fraqueza, para que não venha a perder todo o fôlego.

Como um corredor que está correndo atrás do seu alvo, o cristão jamais pararia de correr, salvo em tempos nos quais deve descansar e receber nutrição. No entanto, ambas as necessidades são em virtude da sua fraqueza herdada. Virá um tempo em que algo dentro do cristão morre. Isto acontece próximo ou ao final do curso. Há um tipo de morte misteriosa que ocorre dentro do seu ser. É como se o sol houvesse desaparecido do nosso hemisfério. Ele não é mais visível; está oculto no mar. (Veremos rapidamente esse estado). Este é um tempo em que o cristão sofre outro tipo de morte… um tempo em que ele começa a entender quão barulhento é por dentro.

É interessante observar o estado desse cristão relacionando-se com outros cristãos, isto é, com os cristãos que estão (ou aparentam estar) muito avançados em seu andar interno, mais profundo com o Senhor.

Esse pobre cristão vê os outros cristãos, todos adornados com muitos triunfos. É óbvio que o Senhor, o Noivo, colocou inúmeros adornos nesses cristãos. O desolado cristão admira muito essas coisas, e se vê no abismo do nada. No entanto, ele não experimenta nenhum desejo de possuir todas as belas coisas que vê diante dos seus olhos. Por uma única razão: ele se sente excessivamente indigno delas. Ele se regozija, entretanto, em ver que outros cristãos desfrutam do favor do Senhor.

Quando o cristão partiu nesta longa jornada, ele sentia ciúme por causa da presença de Deus, desejando manter o Senhor sempre consigo. Agora ele se sente agradecido quando percebe que o Senhor não o está contemplando. Ele atingiu o ponto onde não consegue ver bem algum em sua nudez, sua morte ou putrefação… que descobriu recentemente.

O Senhor despiu este cristão para que Ele mesmo possa ser sua vestimenta.

Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”.

Ele mata tão somente para que Ele mesmo seja a vida do cristão.

“Se morremos com Cristo, seremos ressuscitados juntamente com Ele”.

O Senhor aniquila o cristão visando torná-lo à sua semelhança.

A perda das virtudes pessoais, como as demais perdas, acontece gradativamente. O fim é algo semelhante a um completo desespero; este cristão não somente perdeu a esperança em suas virtudes externas, como o amor-próprio deixou, inclusive, de exercer seu poderio.

Orar neste estado singular é muito doloroso. Nem é estranho que o cristão não consiga recorrer à oração. Houve uma época em que uma doce e profunda calmaria estava presente na oração, e a sustentava. Mas Deus removeu isso. A oração, agora, parece haver desaparecido. O cristão se encontra como aqueles que nunca a praticaram. Há, todavia, uma diferença: ele sente a dor de perda.

Este cristão, neste estágio de sua jornada, poderia de tempos em tempos desviar-se; entretanto, isso é geralmente algo momentâneo, uma coisa de impulso. Não há satisfação nisso; pelo contrário, há amargura, e ele recua o mais rápido possível.

Há, porém, outra coisa deixada!

O Senhor aniquila o cristão visando torná-lo à sua semelhança.

A perda das virtudes pessoais, como as demais perdas, acontece gradativamente. O fim é algo semelhante a um completo desespero; este cristão não somente perdeu a esperança em suas virtudes externas, como o amor-próprio deixou, inclusive, de exercer seu poderio.

Orar neste estado singular é muito doloroso. Nem é estranho que o cristão não consiga recorrer à oração. Houve uma época em que uma doce e profunda calmaria estava presente na oração, e a sustentava. Mas Deus removeu isso. A oração, agora, parece haver desaparecido. O cristão se encontra como aqueles que nunca a praticaram. Há, todavia, uma diferença: ele sente a dor de perda.

Este cristão, neste estágio de sua jornada, poderia de tempos em tempos desviar-se; entretanto, isso é geralmente algo momentâneo, uma coisa de impulso. Não há satisfação nisso; pelo contrário, há amargura, e ele recua o mais rápido possível.

Há, porém, outra coisa deixada!

Há algo que todo filho de Deus possui dentro de si. É um certo segredo, uma certa serenidade, alguma coisa em seu íntimo que o conforta, mesmo em sua morte e impotência. Seja isso o que for , é algo profundo, na parte mais íntima do ser do cristão; é difícil de explicar ou de entender, mas é muito poderoso. Agora, aqui está alguma coisa tão pura, tão mais cristã, que pareceria ser o fim derradeiro daquilo para que todo cristão religioso está destinado, e é a recompensa por todos os trabalhos do cristão.

O que realmente faz o seguidor do Senhor desejar no mais profundo do seu ser alcançar este testemunho: o de ser filho de Deus? Toda espiritualidade é centrada nesta simples experiência. Ah, contudo mesmo isso deve ser abandonado. Assim como as outras coisas que têm sido requeridas, isso também!

Finalmente chegamos àquilo que realmente opera a morte num cristão! Veja você: não importa que desgraça a alma experimente se algo continuar de fato lá. Algo mais necessário para concretizar a morte não virá enquanto esse profundo, quase imperceptível sentimento estiver presente.

Este é um momento de grande temor. Pode ocorrer agonia no coração. O que, na verdade, parecesse haver acontecido é que a única vida que o coração conserva está ali para contar a respeito da morte que traz dentro de si.

Este imperceptível sustento, e a experiência de desgraça são aquilo que acompanha estas duas situações que ocasionam a morte.

Algo é necessário, sobretudo neste tempo: que o cristão seja encontrado fiel. Este é um momento difícil e um tempo de nudez.

O cristão se voltará para qualquer lugar em busca de conforto e refrigério. Ele está potencialmente incapacitado de qualquer ação cristã, e em grande necessidade de consolo.

E se você for um cristão, e tal pessoa chegar até você procurando conforto e direção, o que você fará? Seja cauteloso para não fazer nada que possa abrandar ou remover sua mais recente descoberta sobre sua grande imperfeição. Reanime-o com amor, e com ações simples.

Tenha em mente que essa pessoa com quem você está lidando sente que exerce pouco controle sobre suas circunstâncias interiores. Tentar dissuadi-la de uma situação mais normal poderia arruinar-lhe a saúde, a mente e sua vida interior. Não seja severo; trate-a como se estivesse lidando com uma criança.

Entretanto, observe, por favor, que o que lhe estou dizendo aqui aplico tão somente àqueles que se encontram neste estágio singular.

Agora, por qual motivo o Senhor está removendo até mesmo o elemento de sensação interior? É para livrar este sentimento, esta intuição espiritual de uma operação imperfeita e colocá-lo num interior mais profundo. E como está o Senhor tornando a pessoa mais perfeita neste interior mais profundo? Privando-a de apoiar-se em seus sentidos exteriores, e até mesmo na perfeição de seus sentidos exteriores. Ele agora atrai o cristão interiormente de uma forma tão gentil que o custo para mover-se nessa direção mal é reconhecido, mesmo quando isso significa ele está destinado a perder todas as coisas.

Neste tempo o Senhor algumas vezes faz algo muito paradoxal. Ele despertará os sentidos exteriores. Contudo,“todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus e que são chamados segundo seu propósito”.

Uma vez mais o cristão aprende a respeito da confiança em si mesmo, não importa qual seja seu estado. E se amigos não compreendem o que lhe está acontecendo, a alma simplesmente responde:

“Não repareis no fato de eu estar morena; é que o sol me queimou”.

E assim chegamos ao próximo estágio, no mergulho do cristão rumo ao mar que será seu funeral.

Picture of Jeanne Guyon

Jeanne Guyon

13 de abril 1648 - 9 de junho de 1717

Tradução de: Ana Maria Petitinga Lanees

Livro “The Works Of Madame Jeanne Guyon” – Versão kindle; este livro contém 7 obras de Jeanne Guyon das mais conceituadas. entre elas ‟Spiritual Torrents”, do qual coletamos este breve texto, além de sua autobiografia, suas cartas, poemas, sua análise sobre cântico dos cânticos, entre outros, totalizando ao todo 7 obras.  Saiba Mais.

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