A Alma e o Espírito Humano – Jessie Penn-Lewis
Este conteúdo da Sra. Jessie Penn-Lewis é extremamente relevante para os filhos de Deus, pois destaca a importância de entender e praticar a divisão entre o espírito e a alma. A Bíblia nos orienta sobre essa separação antropológica, como ilustrado em Hebreus 4.12 e experimentado em Lucas 2.35. Compreender e aplicar essa diferença é fundamental para nossa prática cristã.
Todas as citações bíblicas são da Tradução Brasileira de 1917 para 2010; exceto quando indicada outra versão por meio de sua abreviatura.
PASSAGEM BÍBLICA
“Pois a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante que qualquer espada de dois gumes, e que penetra até a divisão de alma e espírito, e de juntas e medulas, e pronta para discernir as disposições e pensamentos do coração.” —Hebreus 4.12.
CAPÍTULO 1
A ignorância dos cristãos em relação à distinção entre “alma” e “espírito” é muito comum e é a causa principal da falta de crescimento pleno na vida espiritual de muitos crentes devotos e sinceros. G. H. Pember aponta como causa dessa ignorância a fraseologia popular de “alma e corpo”, que causou uma deficiência na língua inglesa. Ele afirma que, embora tenhamos os substantivos “espírito e alma”, que frequentemente são tratados como sinônimos, não temos um adjetivo derivado deste último, com a consequência de que a omissão de tal adjetivo praticamente ocultou a natureza tripartida do homem nas versões da Bíblia em inglês, onde a palavra grega “relativa à alma” às vezes é traduzida como “natural” e às vezes como “sensual” (veja 1 Coríntios 2.14; Tiago 3.15; Judas 19).
Certamente, os estudiosos do grego conhecem bem as diferentes palavras no original que representam “espírito” (pneuma); “alma” (psychē); “carne” (sarx); mas para a maioria dos cristãos, essas distinções estão veladas, e como resultado são incapazes de discriminar na experiência entre coisas que são da alma e as que seriam do espírito; tal situação seguramente, afetará vitalmente à sua paz. A necessidade desse conhecimento se torna urgentemente mais do que uma importância acadêmica, pois o Arcanjo caído, com sua sabedoria sobre-humana, conhece a composição dos seres humanos e está agora, como um anjo de luz, usando todo o poder do conhecimento que possui para falsificar o trabalho do Espírito Santo, e CRIAR NO REINO DA ALMA imitações perfeitas da vida pura do Espírito de Deus que habita o espírito do homem, de modo que os cristãos mais sinceros são suscetíveis a serem enganados. Portanto, é necessário que o ensinamento das Escrituras sobre a distinção entre alma e espírito seja trazido ao alcance do entendimento do mais jovem crente e seja o mais claro possível a partir da Palavra de Deus.
Pember não está tentando suprir a necessidade daqueles que já são capazes de ir diretamente ao Novo Testamento Grego e ler por si mesmos, mas sim de ajudar aqueles que precisam de outras orientações, enquanto buscam sinceramente a ajuda do Espírito de Deus para capacitação na compreensão da verdade e para receber entendimento espiritual dos fatos espirituais apresentados nas Escrituras, fatos esses necessários para o crescimento em vida e piedade. Portanto, deixe o leitor pausar neste ponto e, num ato de fé, tomar a promessa de João 14.26 – “O Espírito Santo... vos ensinará todas as coisas…” e João 16.13 – “Ele vos guiará em toda a verdade”, com confiança de que o Espírito de Deus cumprirá Seu papel para o filho de Deus que está disposto a aprender.
O Espírito Santo é capaz de ensinar ao crente, por meio da experiência, a distinção entre “alma e espírito”, mesmo sem que ele entenda intelectualmente essa verdade; e vice-versa. O estudioso pode entender claramente a diferença conforme expressa no grego, sem compreender plenamente o que as palavras significam experimentalmente, ou seja, ele pode possuir a verdade apenas de maneira mental, em vez de espiritual, e então a Palavra se torna letra sem o espírito. Além disso, o crente que foi ensinado experimentalmente pelo Espírito Santo a distinguir “alma e espírito” antes de compreender a distinção intelectualmente, está mais apto a entender e “manusear corretamente a palavra da verdade” do que o leitor do grego que não foi ensinado por Deus, pois por trás das palavras nas Escrituras há verdades espirituais que não podem ser compreendidas pelo homem natural, isto é, o homem “relativo à alma” (literalmente, 1 Coríntios 2.14) – e que só podem ser conhecidas por meio de revelação (ver 1 Coríntios 2.10-12).
Mas primeiro, quanto ao adjetivo ausente! G. H. Pember diz que está sendo feita uma tentativa de usar a palavra grega “psychē” para expressar em inglês o adjetivo relativo à alma. Todavia, a palavra é, por assim dizer, muito “grega” para se recomendar para uso geral. Em conexão com Tiago 3.15, Pember usa a palavra “soulish”, e isso parece expressar mais aproximadamente o que é necessário. Stockmayer também usa essa mesma palavra – “soulish” – para significar o que “pertence à alma”, pois ele diz em referência a 1 Coríntios 2.14: “O texto grego a tem, o ‘homem-alma’, ou ‘homem psíquico’. Assim como espiritual é o adjetivo de espírito, soulish é o adjetivo de alma”. A palavra “soulish”, portanto, poderá ser geralmente aceita pelos leitores em inglês como o adjetivo ausente, o qual nos permitirá falar de “soulish” (almático ou psíquico) assim como falávamos normalmente de algo do espírito como “espiritual” (1 Coríntios 3.1); ou, ainda, “carnal” no caso de um cristão que prepondera para sua carne, sendo esses dois últimos significados tendo uma compreensão mais natural, uma vez que são mais fáceis de considerá-los em alguma língua vernacular.
Portanto, para esse propósito, ela (soulish – inglês ou psíquico – português) será usada dessa forma no presente tratado, semelhantemente como espiritual é usado para espírito e carnal para carne.
Quanto à distinção entre alma e espírito, Gall aponta que essa distinção não é feita apenas no idioma inglês, mas em cada língua clássica, desde o hebraico até as demais. No Novo Testamento em inglês, apenas duas passagens destacam claramente essa distinção, a saber, Hebreus 4.12 – “Dividindo alma e espírito” — e 1 Tessalonicenses 5.23 — “Santificai-vos, espírito, alma e corpo”. Essas duas passagens, são suficientes para que o leitor perceba que o homem é tríplice e não apenas “alma” e “corpo”.
A “Alma” (psychē) e suas Funções
O próximo ponto a ser considerado é a pergunta: “O que é a ‘alma’ em distinção ao espírito, e quais são suas funções?” Aqui, algumas citações de outros escritores nos ajudarão antes de nos voltarmos para as Escrituras, a fim de descobrir o que o apóstolo quer dizer com a “divisão entre alma e espírito” e, assim, entender de forma mais clara como o espírito, a alma e o corpo “podem ser santificados e preservados sem culpa até a vinda do Senhor”.
Tertuliano, um dos Pais da Igreja que escreveu nos primeiros séculos da era cristã, chama a “carne” — ou ser físico — de o “corpo da alma”, e a alma de o “vaso do espírito”. A alma fica entre o espírito e o corpo, pois “a comunicação direta entre espírito e carne é impossível; seu relacionamento pode ocorrer apenas por meio de um intermediário” — sendo a “alma” esse intermediário.
A “alma era o ponto de encontro, o ponto de união entre o corpo e o espírito”, também escreve o Dr. Andrew Murray. “Através do corpo, o homem — a alma vivente (Gênesis 2.7) — estava relacionado com o mundo externo dos sentidos”; através do “espírito, ele estava relacionado com o mundo espiritual”.
Pember explica a função de cada um de forma muito clara quando diz: “O corpo podemos chamar de consciência dos sentidos; a alma, a autoconsciência; e o espírito, a consciência de Deus”. Novamente, ele diz que o corpo "nos dá o uso dos cinco sentidos”; e a alma, o “intelecto que nos ajuda no estado de existência presente juntamente com as emoções que surgem dos sentidos”, enquanto o espírito é a parte mais elevada que “veio diretamente de Deus, e somente por meio dela podemos compreendê-Lo e adorá-Lo”.
O Dr. Andrew Murray concorda com isso quando escreve que os dons com os quais a alma foi dotada quando o homem se tornou uma “alma vivente” eram os de “consciência, autodeterminação, ou mente e vontade”; e estes eram para ser apenas o “molde ou recipiente” no qual a vida do espírito seria recebida. O Dr. Murray também diz: “O espírito é o lugar da nossa consciência de Deus; a alma da nossa autoconsciência; o corpo da nossa consciência do mundo. No espírito, Deus habita; na alma, o eu; no corpo, os sentidos”.
Novamente, Pember escreve sobre a criação do homem e como o ser tríplice foi formado — “Deus primeiro moldou o corpo sem vida e depois soprou nele o ‘fôlego das vidas’ (Gênesis 2.7. O original está no plural)”, e isso “pode se referir ao fato de que o sopro de Deus produziu uma vida dupla — sensual (no sentido de relacionado aos sentidos) e espiritual…”. Ele acrescenta, em uma nota de rodapé, que possivelmente o significado do uso do plural no “fôlego das vidas” é que “o sopro de Deus se tornou o espírito e, ao mesmo tempo, pela sua ação de entrada no corpo, produziu a alma”.
Resumidamente, vemos que todos esses escritores praticamente definem a “alma” como o centro da personalidade, composto pela vontade e pelo intelecto ou mente; uma entidade pessoal que fica entre o “espírito”, com sua abertura para o mundo espiritual, e o “corpo”, aberto ao mundo exterior da natureza e dos sentidos, tendo o poder de escolher qual mundo dominará ou controlará o ser humano inteiro. Por exemplo, quando Adão andava no jardim do Éden, o espírito insuflado por Deus nele dominava sua “alma” — isto é, intelecto, mente, vontade — e, através do vaso em que a “alma” brilhava, brilhava e através do tabernáculo terreno de argila — o corpo — tornava-o luminoso, contendo luz em si, imune ao frio e calor e capaz de cumprir perfeitamente o objetivo de sua criação.
A Queda do Homem
Mas, infelizmente, é necessário escrever um “mas” — o homem caiu e, após um tempo, o resultado foi visto conforme descrito pelo próprio Senhor em Suas palavras: “Todo desígnio do seu coração era mau, continuamente” (Gênesis 6.5, ARC). A “Queda” aparentemente começou no departamento intelectual da alma, pois é dito que Eva viu que “a árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e a árvore desejável para dar entendimento” (Gênesis 3.6, tradução da ARC). O apelo da serpente não foi feito ao vaso de argila, ou ao homem exterior, pois o corpo naquela época estava perfeitamente dominado pelo Espírito; mas foi direcionado ao intelecto e entendimento do homem, e baseou-se em um desejo legítimo de avançar no conhecimento e poder no reino invisível de outro mundo. “Sereis como Deus”, disse a serpente, não “sereis como os animais”, criados por Deus! A tentação era o CONHECIMENTO, e justamente o conhecimento que provavelmente Deus pretendia conceder em tempo oportuno, mas que foi agarrado antes do seu tempo e fora da vontade de Deus.
As palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 1.19 são, portanto, muito significativas em relação a esse aspecto da Queda, pois a “mensagem da cruz” é chamada pelo Apóstolo de poder de Deus para “destruir a sabedoria dos sábios”. Uma vez que o pecado entrou através da via do intelecto, a salvação vem por meio de uma Cruz que destrói a “sabedoria” caída pela mera aceitação de sua mensagem, pois a pregação de “Cristo crucificado” é para a sabedoria dos homens “loucura” (1 Coríntios 1.18-25). Assim, Deus, em Sua sabedoria, provê a salvação de uma maneira que trata da causa pela qual a Queda ocorreu! Portanto, Paulo escreve: “Se alguém dentre vós se tem por sábio neste mundo… torne-se louco para se tornar sábio, porque a SABEDORIA DESTE MUNDO É LOUCURA PARA DEUS” (1 Coríntios 3.18-19, ARC).
Além disso, Eva caiu ao ceder à mesma tentação que havia causado a queda de Satanás em si mesmo, pois ele havia dito: “Serei como o Altíssimo…” (Isaías 14.13-14). O tentador sabia como atrair Eva, sugerindo algo mais elevado do que ela possuía, pois ela estava limitada por um corpo feito de pó, mas tinha uma alma capaz de apreciar conhecimento e crescimento, através da parte mais elevada do ser tríplice.
O pleno efeito da queda não vemos até anos depois, quando o registro da condição da raça mostra que o declínio foi rápido, pois a “sabedoria” que concedeu o conhecimento do bem e do mal no Jardim do Éden chegou ao seu ápice, em devida época, em um completo afundamento na “carne”, de modo que a parte da natureza tríplice do homem que ele tinha em comum com a criação animal, obteve o controle. Foi então que Deus olhou para a raça caída e disse: “O meu Espírito não permanecerá para sempre no homem… porquanto ele é carne” (Gênesis 6.3). E assim é que não apenas “a morte reinou” sobre a raça caída de Adão, mas todo ser humano nascido à semelhança do primeiro Adão é “terrenal” e é dominado pela carne em vez do espírito; a alma, que é a personalidade “dele mesmo” (veja Lucas 9.23), torna-se escrava da carne e da vida terrena, em vez de ser serva do espírito.
Assim, a condição do homem não regenerado é agora a seguinte: (1) seu espírito humano, proveniente de Deus, está caído e alienado de Sua vida (Efésios 4.18) “sem Deus”, separado de Cristo (Efésios 2.12) e incapaz de comunhão com Ele; (2) a alma — intelecto, mente, vontade, autoconsciência — pode governar sobre o corpo, ou (3) o corpo, em seus desejos e apetites, pode escravizar e dominar a alma. No entanto, embora o espírito humano esteja “morto” para Deus e em trevas, ele permanece tão cheio de atividade quanto a mente ou o corpo. Em alguns casos, a parte espiritual do homem não regenerado pode ser tão grande em sua capacidade que, mesmo em sua condição de escuridão, ela domina a alma e o corpo. Então, pode-se dizer que o homem é “espiritual”, no sentido de possuir mais “espírito” do que outros, que são principalmente “alma” ou “carne”. Estes são aqueles que buscam comunicação com o mundo espiritual, separado do Espírito Santo de Deus, e se tornam “médiuns”, capazes de exercer “poderes ocultos”, como a clarividência, etc., conferidos a eles por meios satânicos. Pois, a menos que o espírito humano de um homem seja regenerado e habitado pelo Espírito Santo de Deus, ele está em harmonia com os espíritos caídos de Satanás e governado pelo príncipe do poder do ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência (Efésios 2.2-3).
Vemos, portanto, que o espírito caído do homem — desprovido de Deus na Queda — afundou, por assim dizer, no vaso da “alma”; e a “alma” novamente afundou no corpo carnal, sob o que o apóstolo Paulo chama de “o poder da carne”, de modo que nos não convertidos a alma, às vezes manifestada na intelectualidade, outras vezes na sensualidade, muitas vezes em ambas, reina sobre eles com domínio indiscutível. Isto é o que Judas deseja apresentar em seu versículo 19, que deve ser traduzido como “Estes são os que causam divisões, homens dominados pela alma, não tendo espírito”.
Fausset claramente destaca isso em seu comentário sobre este trecho, pois escreve: “Na divisão tríplice do ser humano… o estado adequado no plano de Deus é que ‘o espírito’… deve estar em primeiro lugar, mas no homem natural… o espírito afunda em subserviência à alma animal, que é terrena em seus motivos e objetivos. Os ‘carnais caem um pouco mais baixo, pois nestes a carne, o elemento mais baixo… reina supremo”.
Na regeneração, é o “espírito do homem” obscurecido e caído que é vivificado novamente e renovado. Este é o significado das palavras do Senhor para o “Mestre de Israel”, a quem Ele disse, apesar de todo o conhecimento religioso intelectual que ele possuía: “Vós deveis nascer DO ALTO” (João 3.3), e mais tarde para Seus discípulos: “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita” (João 6.63).
A maneira pela qual a nova vida de cima alcança o espírito caído do homem é demonstrada nas palavras do Senhor: “O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.” (João 3.8). E a causa pela qual o Espírito de Deus vivifica é dada em João 3.14 como a morte do Deus-Homem na cruz em lugar do pecador, para que “todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.
A Cruz e a Queda correspondem exatamente e perfeitamente — uma como o remédio para a outra. Primeiramente, pela morte do Salvador na Cruz, o pecado teve que ser afastado e o caminho tornou-se possível para o Deus Santo perdoar o pecador. Em segundo lugar, ao pecador foi necessário ser oferecido um caminho de escape da escravidão da alma e do corpo na qual ele havia caído. A natureza tríplice do homem poderia então ser ajustada novamente, com o espírito retomando a dominação e o corpo agindo meramente como o vaso exterior e material — o instrumento do espírito através da alma.
Essa forma de escape é esclarecida em muitas partes da Escritura, onde somos ensinados que a morte do pecador está inclusa com a do Salvador. O modo de aplicação para a libertação será visto posteriormente, à medida que consideramos o significado completo da Cruz.