Desvendando os Mistérios da Vida após a Morte, Uma Jornada Através do Pensamento dos Pais da Igreja Pré-Nicenos
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Como compreendiam os primeiros cristãos acerca do Mundo Além? Como foi definida as primeiras considerações oficiais e como sucedeu os primeiros debates? Você vai descobrir tudo neste Post. Além disso, também saberá quem eram os que defendiam o argumento discordante e como esse argumento tem ressoado com muita semelhança ao pensamento do cristianismo moderno. Não perca mais tempo, leia esse compêndio que preparamos para você a fim de que suas dúvidas sobre o assunto sejam definitivamente sanadas.
NOTA EXPLICATIVA
Pré-Niceno compreende-se o período histórico ocorrido antes do Concílio de Nicéia I, no ano 325 d.C.
As citações se dão da seguinte forma:
Sempre será provida pelo nome do seu autor, o ano em que a consideração ou citação foi feita, seguida da sigla ANF que significa: The Ante-Nicene Fathers. (Pais Pré-Nicenos).
A ANF contém 10 volumes e inúmeras páginas, o material é distribuido livremente online, você pode acessar todos os 10 volumes clicando aqui.
Neste artigo, as citações serão norteadas conforme o exemplo abaixo:
“Adão caiu sob o poder da morte por meio do engano da Serpente, portanto cada indivíduo tem cometido transgressões individuais”. (Justino Mártir, a. 160, ANF 1.243).
Ao analisar a citação acima temos o nome do autor dela, assim como o ano mais provável (a. 160) e por conseguinte o código ANF, indicando pelo primeiro número que tal texto faz parte do volume 1; após o ponto, temos o número: 243, isto indica a página. Portanto, a citação fica interpretada da seguinte maneira: ano 160; Pais Pré-Nicenos (ANF); volume 1; página 243.
Ao se depararem com colchetes duplos [[ ]] significa que, este redador que escreve, se viu obrigado a interpolar — ou mesmo fazer um breve comentário — para tentar elucidar algum ponto que ficou obscuro e, portanto, não teria clareza o seu desfecho; pois há textos que não fecham a conclusão. Importante salientar que tal, comentário, texto ou interpolação não está no original (ANF) daquele autor. Lembrando que isso só acontecerá com colchetes duplos, os colchetes simples [ ] apenas corroboram o raciocínio ou resgatam um vocábulo que o autor disse bem antes e que o leitor não pode observar por não ter acesso ao contexto remoto.
A abreviatura N.R significa: Nota do Redator.
Sumário
Para Onde Vão Os Mortos
Como os pais da igreja no período que, ainda continha uma igreja primeva, entendiam em suas épocas, mais precisamente antes do Concílio de Niceia I, o estado do Pós-Morte?
Vamos analisar o pensamento de Clemente Romano; ele faz parte da categoria dos Pais Apostólicos. Seu texto é extraído de sua carta aos Coríntios, conhecida como a Primeira Epístola de Clemente aos Coríntios. Isso porque existe uma segunda carta atribuída também a Clemente, mas, na verdade, não foi ele quem a escreveu. Portanto, nossas considerações são baseadas na visão de Clemente de Roma acerca daquilo que é tido como sua primeira carta aos Coríntios, datando por volta do ano 96 d.C. (século I).
“Pedro, devido à inveja injusta [de seus perseguidores], suportou não uma ou duas, mas inumerosas dificuldades. E quando, por fim, ele sofreu o martírio, ele partiu para o lugar de glória que lhe era devido. (…) Paulo também obteve a recompensa da perseverança paciente, após ter sido jogado na prisão por sete vezes (…) e sofrido o martírio sob os prefeitos. Dessa maneira, ele foi removido do mundo [[dos vivos]] e foi para o santo lugar.”
—Clemente de Roma (a. 96 – ANF, 1.18, os grifos são meus).
Como podemos perceber, Clemente entende que, ainda que estejam mortos, os santos, como Pedro e Paulo, eles estariam em lugares gloriosos.
Continuemos com a visão de Clemente acerca do estado intermediário:
“Todas as gerações de Adão até o dia de hoje morreram. Entretanto, aqueles que por meio da graça de Deus foram aperfeiçoados no amor, possuem agora um lugar entre os piedosos. E eles se tornarão manifestos na revelação do reino de Cristo. Pois está escrito: ‘Entrem nas câmaras secretas por um pouco de tempo, até que a minha ira e fúria passem. E eu me lembrarei de um dia propício e os levantarei de vossos túmulos’”
—Clemente de Roma (a. 96 – ANF, 1.18, os grifos são meus).
Nesta porção extraída ainda da Primeira de Clemente aos Coríntios, podemos considerar que, para Clemente, há uma graça que alcança muitos das gerações de Adão até os dias em que ele escrevia sua carta, e ele aplica uma citação do profeta Isaías “Entrem nas câmaras” (Isaías 26.20).
A citação de Clemente é da Septuaginta, resta saber se ele acrescentou “E eu me lembrarei de um dia propício e os levantarei de vossos túmulos”, ou se, tal texto que concluí o final do versículo 26, estava contido em uma LXX que não teria sofrido adulteração.
Se, de fato, tal conclusão não for espúria — o que pode haver uma grande chance de acontecer, uma vez que a LXX sofreu algumas tentativas de interferência de seu texto1 para que ele fosse harmonizado ao texto hebraico normativo, posterior aos apóstolos, portanto, pode ter havido a remoção da conclusão de Clemente —, o que mais se enfatiza é a ressurreição; contudo, o interessante que as câmaras divergem de túmulos, indicando que se, o texto de Clemente faz parte da originalidade textual de Isaías, se conclui que as câmaras [ou aposentos, lugar de hospedagem] eram lugares do Além-Vida que continham a presença de mortos santos, e que, Clemente, ao citar a morte de Pedro e Paulo, dizia que eram lugares gloriosos, seguramente não se tratava de nenhum estado de inércia temporária.
Além disso, indica um estado intermediário além do túmulo em direção aos aposentos. Que mais tarde se anexaria ao evento da ressurreição que, na visão de Clemente desse texto de Isaías, se daria no Reino de Cristo.
Tal é a interpretação de Clemente acerca do texto do profeta; o que parecia ser a interpretação patrística vigente da época; mas o que pode chocar muitos cristãos de hoje, e penso que será inevitável tal sensação, é que para os pais pré-nicenos, estando a interpretação de Isaías 26.20, certa ou não, eles viam esse aposento como um lugar não beatífico.
Policarpo, nascido na Ásia Menor por volta de 60 d.C. Discípulo do apóstolo João, Policarpo dedicou sua vida a ensinar, defender e fortalecer a fé cristã.
Em 155 d.C., Policarpo foi preso e martirizado pelas autoridades romanas por se recusar a negar sua fé em Jesus Cristo.
Eles estão em seus devidos lugares contando com a presença do Senhor, com o qual também sofreram [[com respeito aos mártires]] .
—Policarpo (a. 135 – ANF, 1.35, os grifos são meus).
As palavras de Policarpo nos soam um tanto enigmáticas, considerando o que poderia ser “devidos lugares”, dando a entender não ser um lugar totalmente comum a todos. O conceito de aposentos indicado por Clemente na sua interpretação de Isaías 26.20, com a conexão de “devidos lugares” dito por Policarpo, indicam que os santos têm lugares próprios ao se despedirem da Terra dos Viventes.
Outra questão importante que os irmãos patrísticos consideravam, era a presença de Deus e não necessariamente a pessoa de Deus, no lugar que os santos mortos estavam, em especial, os mártires. Isso vai ficar mais claro adiante com várias outras considerações importantes de vultos do cristianismo, ainda, primitivo.
A partir de Justino teremos várias menções sobre o assunto.
Justino Mártir, nascido em Samaria no ano 100 d.C., foi um filósofo pagão em busca da verdade se converteu ao cristianismo e se tornou um dos seus mais importantes defensores.
Antes de se converter, Justino dedicou-se ao estudo de diversas filosofias, buscando respostas para as grandes questões da existência. Foi por meio da fé cristã que ele finalmente encontrou o que tanto procurava: uma verdade experimental e um caminho para a salvação do homem.
Após sua conversão, Justino dedicou sua vida a defender e explicar a fé cristã. Ele escreveu diversas obras, como a “Apologia” e o “Diálogo com Trifão”, nas quais argumentava a favor do cristianismo contra seus críticos pagãos, gnósticos e judeus.
Um intelectual respeitado e um apologista habilidoso, Justino Mártir teve um papel crucial na defesa e difusão do cristianismo durante os primeiros séculos da Igreja. Sua obra continua a ser estudada e admirada até hoje por sua clareza, erudição e paixão pela fé.
“As almas dos piedosos permanecem num lugar que é melhor, enquanto as almas dos injustos e perversos ficam em um lugar pior, aguardando o tempo do julgamento.”
—Justino Mártir (a. 160 – ANF, 1.239).
“[[Os que se levantaram contra o Senhor]] pensaram que poderiam matá-lo, e que Ele, como qualquer mortal comum, teria que permanecer no Hades.”
—Justino Mártir (a. 160 – ANF, 1.248).
Nesta porção está mais do que claro que, para Justino, toda alma ficava no Hades, é o que ele chama de “mortal comum”, em contraparte Daquele que seria morto por Sua própria autoridade, o qual é um verdadeiro imortal incomum; incomum não por ser imortal, mas que sendo como tal, ainda morre de maneira extraordinária. Este jamais poderia ficar no Hades, como imaginavam os judeus. Portanto, Justino conecta com o pensamento judaico de sua época que enxergava o Sheol como lugar dos mortos.
Justino fazia uma análise preterista deles, pois como emitia seu pronunciamento por volta do ano 160, todos eles (os que derramaram o sangue do Senhor) já teriam morrido, e assim ele finaliza essa análise da maneira a seguir:
“É muito provável que eles mesmos estejam agora se lamentando no Hades e se arrependendo com um remorso que é tarde demais.”
—Justino Mártir (a. 160 – ANF, 1.288).
“Vocês podem ter caído junto com alguns gnósticos que são chamados cristãos. Entretanto, eles não admitem o estado intermediário, e eles se atrevem a blasfemar o Deus de Abrahão. São os mesmos que dizem que não há ressurreição dos mortos. Em vez disso, eles dizem que quando morrem suas almas são levadas para o céu. Não pense que eles são cristãos.”
—Justino Mártir (a. 160 – ANF, 1.239).
Algo perturbador se desprende das palavras desse importante personagem da história da Igreja. Suas ideias corroboram com os pensamentos de Clemente e Policarpo, defendendo a existência de um lugar intermediário onde os justos aguardam a presença do Senhor; que, embora possa visitar esse local, não o faz como sua morada permanente, que se encontra no Terceiro Céu.
Ademais, a crença na ida imediata da alma ao céu era considerada um insulto ao pensamento cristão primitivo e, segundo tudo indica, não foi defendida pela Igreja primitiva, mas sim pelos gnósticos, os primeiros a afirmarem que, após a morte, as almas se dirigem ao céu.
Isso parecia na análise de Justino um absurdo, pois confrontava com a necessidade de ressurreição dos mortos, coisa que os gnósticos também negavam por acreditarem que toda matéria era má.
O que se conclui, a partir do período patrístico primitivo, é que, a crença em uma morada celestial imediatamente após a morte, pela avaliação ortodoxa, era um engano; e tal pensamento era oriundo dos gnósticos.
“Se eles se esforçam por acreditar que não existe nada após a morte, tendo declarado aos que morrem como que, entrando em um estado de insensibilidade, logo eles livram [os que eles mesmos odeiam] de sofrimentos, tornando seus adversários benfeitores.”
—Justino Mártir (a. 160 – ANF, 1.182).
Agora, Justino não tinha reservas ao criticar aqueles que sugeriam uma possível inércia da alma após a morte. Esta ideia parecia ter sido trazida pelos judeus, como já se observava entre os saduceus. Mais tarde, essa concepção também encontrou eco em alguns cristãos, entre os quais se incluiu, aparentemente, Taciano.
Taciano, nascido na Assíria por volta de 150 d.C., foi um apologista cristão que se destacou por sua mente afiada e escrita clara. Convertido ao cristianismo na idade adulta, Taciano dedicou sua vida a defender a fé contra seus críticos e a explicar os ensinamentos cristãos de forma acessível.
Um dos primeiros apologistas da Igreja, Taciano é conhecido principalmente por sua obra “Discurso Contra os Gregos”, na qual ele refuta as crenças pagãs e apresenta argumentos a favor do cristianismo. Sua linguagem direta e lógica, aliada ao seu profundo conhecimento da filosofia grega, tornou-o um polemista eficaz e um defensor incansável da fé.
“A alma em si mesma não é imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Se de fato, ela não conhece a verdade, ela morre, mas levanta novamente no fim do mundo com o corpo. (…) Todavia, novamente, se ela adquirir o conhecimento de Deus ela não morre, apesar de ter ficado dissolvida por um tempo.”
—Taciano (a. 160 – ANF, 2.67).
Como podemos perceber no pensamento de Taciano, a alma que não conhecia a verdade de Deus era dissolvida (segundo ele) em um estado de inércia, enquanto as que conheciam, desfrutavam da imortalidade. Ao que parece, Taciano entendia que na ressurreição geral essas almas seriam ressuscitadas e poderiam conhecer a verdade, portanto, encontrariam sua imortalidade numa segunda chance.
A expressão de interjeição de Taciano “ó gregos” revela que, no seu entendimento particular, que dizer que a alma era imortal, seria uma coisa oriunda da ambiência helenista, filosófica.
Mas tal conclusão jamais encontraria respaldo com a passagem de Mateus que diz: “Não temam o homem que é capaz de matar o corpo e nada pode fazer com alma” (Mt 10.28). Ao que perece, se Taciano teve que lidar com esse versículo, ele então concluiu que as almas imortais eram dos santos, e dos demais, eram almas que se dissolveriam no momento da morte, retornando a existência na futura ressurreição geral, a que é descrita no comparecimento do Trono Branco. Então, podemos ver, em parte, dos Pais da Igreja do Oriente, alguma ligação com um estado de inércia temporária; mas observando mais de próximo, parecia que Taciano mesmo tinha dúvidas sobre essa matéria, pois ele mesmo diz: “é possível”, tal sentença reflete uma não certeza do que ele próprio estava articulando.
Logo após as análises de Justino, observamos Irineu, bispo de Lyon. Embora pareça que ambos viveram na mesma época, os textos de Irineu foram escritos um pouco mais tarde, com uma diferença de cerca de uma ou duas décadas.
Irineu foi um importante ícone entre os cristãos primitivos, sua devoção e aplicação permitiram ele ser notório como apologeta e também um defensor da ortodoxia cristã.
Nascido na Ásia Menor, ele é conhecido principalmente por sua obra “Contra as Heresias”, na qual refutou as doutrinas gnósticas. Sua abordagem teológica foi fundamental para o desenvolvimento da doutrina trinitária e da cristologia na igreja primitiva.
“Os gnósticos são todos extremamente inconsistentes; afinal, eles declaram que não são todas as almas, exceto a dos justos, que entram no lugar intermediário.”
—Irineu de Lyon (a. 180 – ANF, 1.403).
Essa porção, ao que parece, indica a incoerência dos gnósticos por agora apontarem um lugar intermediário, sendo que eles próprios já haviam afirmado que as almas iam para o céu e não para um lugar de espera (veja a citação de Justino “Lugar Intermediário e a Ressurreição”).
“O Senhor tem ensinado com grande plenitude que as almas continuam a existir. Elas não fazem isso passando de corpo para corpo. Em vez disso, elas preservam a mesma forma daquela do corpo ao qual estavam adaptadas. (…) O Senhor afirma que o homem rico reconheceu a Lázaro depois da sua morte, como também a Abrahão. (…) Por meio dessas coisas, então, fica plenamente declarado que as almas continuam a existir, que elas não passam de corpo para corpo, que elas possuem forma de um homem (de maneira que possam ser reconhecidas) e que elas retêm as memórias das coisas deste mundo. Além disso, fica claro que Abrahão possuía o dom da profecia e que cada classe recebe uma habitação como aquela que merece, mesmo antes do juízo.”
—Irineu de Lyon (a. 180 – ANF, 1.411).
Uau, quantas reflexões Irineu apresenta neste breve compilado! Mais uma vez, um pai da Igreja combate com veemência o conceito errôneo de “inércia da alma”, ou como alguns [que se dizem cristãos], ainda sob a influência do mesmo fermento da época, denominam hoje de “sono da alma”.
Além de combater o conceito da alma não se manter viva no Além, Irineu refuta outros conceitos que circulavam entre os cristãos, colocando em risco a ortodoxia. Influenciados por algumas ideias judaicas, mas principalmente pela corrente filosófica grega, o gnosticismo se tornava um inimigo a ser combatido, pois trazia consigo muito do pensamento e dos ideais dos panteões gregos sobre o Pós-Morte. Para Irineu, não bastava apenas compreender os erros do gnosticismo, era preciso evitar qualquer tipo de mistura com suas ideias.
Essa declaração entra em conflito com a “inércia da alma” na morte, com o conceito de reencarnação, com a falha em compreender que o espírito humano junto com a alma onde se mantém uma fisiologia idêntica ao do corpo humano no Além-Vida e da incapacidade de reconhecer outras almas.
Para finalizar, Irineu defende a persistência dos dons após a morte. Como exemplo, cita o dom da profecia de Abrahão. Se não for o caso de manter, então Irineu cria que podia se adquirir. Pois se dissermos que Abrahão não era profeta em sua época o seria após sua morte (de acordo com Irineu). Se isso não for impressionante em relação ao pensamento cristão primevo quanto à morte, creio que não saberia mais dizer o que é.
“Os hereges não reconhecem a salvação de sua carne, mas dizem que, imediatamente depois de suas mortes, eles passarão por cima do céu (…) Pois eles não escolhem entender que se essas coisas são como eles dizem, então o próprio Senhor, no qual eles têm proferido crer, não ressuscitou ao terceiro dia. Em vez disso, após Ele ter expirado na cruz, Ele, sem dúvida, teria partido para o alto, deixando seu corpo na terra. Entretanto, isso não poderia estar mais errado, O Senhor observou a Lei dos Mortos para que Ele fosse, então, o Primogênito de entre os mortos.
Ele esperou até findar o terceiro dia “nas profundezas da terra”. Desta maneira, estes homens [os gnósticos] devem ser confundidos, pois alegam que “as profundezas” se referem ao nosso mundo, mas quanto ao homem interior do Senhor teria este deixado o corpo aqui, e ascendido a um lugar supercelestial. Todavia, eles estão complementa errados, o Senhor “foi para o seio da sombra da morte”, onde as almas de todos os mortos estão. Contudo, depois disso, Ele ressuscitou no corpo. E, depois da ressurreição, Ele foi, então, levado [para o céu]. Disso fica claro que, igualmente, as almas de seus discípulos também — a favor dos quais o Senhor experimentou essas coisas — irão para o lugar que não é visível, porém reservado por Deus a eles. E eles, então, permanecerão lá até a ressurreição por completo (isto é, corporalmente), exatamente como o Senhor ressuscitou, eles comparecerão dessa forma na presença de Deus.”
—Irineu de Lyon (a. 180 – ANF, 1.560).
Mais um texto completo de Irineu sobre o assunto, agora com um enfoque na salvação do corpo, a ressurreição de entre os mortos. Podemos notar o cuidado dele em usar o termo “Primogênito de entre os mortos”, garantindo que JESUS era precursor e Senhor sobre a ressurreição que todos os seus discípulos ainda irão experimentar conforme a suas ordens.
Para finalizarmos, a parte de Irineu nessa nossa antologia sobre a visão dos pais da Igreja pré-nicenos, vamos deixar o último trecho em que esse cristão proeminente de sua época fala acerca desse assunto.
Como Senhor havia tratado no Sermão da Montanha: “nenhum discípulo está acima do seu mestre” Irineu retoma esse princípio que norteia a Igreja de Deus e aplica à perspectiva da morte e ressurreição.
“‘Nenhum discípulo está acima do seu mestre’. Portanto, nosso mestre não partiu imediatamente voando para o céu. Em vez disso, Ele aguardou o tempo da sua ressurreição, como determinado pelo Pai. De modo semelhante, nós também devemos aguardar o tempo da nossa ressurreição determinado por Deus.”
—Irineu de Lyon (a. 180 – ANF, 1.560–561).
Agora, voltaremos nossas atenções para Clemente de Alexandria. É importante frisar, para evitar confusões, que se trata de uma figura distinta de Clemente de Roma. Este último viveu no primeiro século e conviveu com os apóstolos, enquanto Clemente de Alexandria viveu no segundo século.
Clemente de Alexandria tinha por característica fazer mais considerações acerca do que acontecia com os mortos. Ele, assim como seus pares pré-nicenos, compreendia que havia um estado intermediário que mantinha as almas até a ressurreição. Todavia, ele se aventurou em conclusões mais distintas, como o Evangelho ser pregado no Hades e oportunidades de arrependimento mesmo depois da morte.
Portanto, se para o leitor o assunto parecer um tanto desconexo, que relegue, caso assim prefira, as considerações mais inusitadas a um estudo histórico; e fique com aquelas questões que, mais bem alinhadas com o assunto, possam contribuir para o entendimento do estado intermediário.
“Então eu penso que está demonstrado que tanto Deus (sendo bom) quanto o Senhor (sendo poderoso) salvam com igualdade e justiça que se estende para todos que se voltam para Deus, seja aqui ou em outro lugar. Pois não é apenas aqui que o poder ativo de Deus está presente. Em vez disso, ele está em todo lugar e está sempre trabalhando. (…) Pois, não é justo que aquelas pessoas [que morreram antes de Cristo] sejam condenadas sem julgamento, e que apenas aqueles que viveram depois de sua vinda tenham a vantagem da justiça divina.”
—Clemente de Alexandria (a. 195 – ANF, 2.491).
Clemente, como já adiantamos, faz uma ponderação além do local, ele avalia dentro da sua ótica o que é a justiça de Deus. Para nosso foco de estudo, vamos avaliar como Clemente via a habitação das almas no mundo dos mortos; ele diz: “aqui ou em outro lugar”, apesar dele deixar vago, e sua proposição nisto está em querer desvelar o alcance da justiça de Deus, portanto para isso não importava o lugar; porém, não se pode afirmar que este: “outro lugar” fosse o céu, pois lá não seria necessário o alcance da justiça de Deus que, para Clemente, era garantir um julgamento antes de condenar, desta forma ele concluiria que haveria oportunidades mesmo após a morte; e se, assim o for, tal coisa não poderia acontecer no céu, uma vez que habitando na região celestial ficaria claro que não havia nenhum tipo de condenação.
“(…) O Senhor desceu ao Hades (…) pregar o Evangelho (e de fato Ele desceu). Se desse modo Ele pregou para todos, então todos os creem serão salvos ao fazerem sua profissão de fé ali, mesmo que eles sejam gentios. Pois os castigos de Deus são salvadores e, por vez, disciplinadores”, conduzindo à conversão. Ele deseja o arrependimento, em vez da morte dos pecadores. Isso é assim, especialmente, pelo fato das almas agora desprovidas da carne dos seus corpos ficam mais sensíveis [[possivelmente Clemente refere-se a percepção do engano das paixões, enquanto as pessoas estavam vivas; via contexto ele cita as paixões que as almas nutrem devido a manter-se no seu corpo]].
—Clemente de Alexandria (a. 195 – ANF, 2.491).
Vamos tratar agora dos textos que são extraídos de Tertuliano.
Tertuliano, nascido em Cartago por volta de 160 d.C., foi um dos pilares teológicos daquele período. Sua mente afiada, moldada por estudos em direito e retórica, o tornou um defensor incansável do cristianismo em tempos de terríveis perseguições e heresias.
No entanto, é importante salientar que precisamos considerar as experiências de Tertuliano dividindo-as em: antes e depois da influência montanista.
“Nós falamos do Paraíso, o lugar divino da bem-aventurança, designado para receber os espíritos dos santos. Ali os santos deixam de saber dos assuntos deste mundo (…)”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.234).
Tertuliano diz que os espíritos dos santos são colocados no Paraíso, a parte consoladora do Mundo dos Mortos. Ele conclui com um assunto que chama a atenção de muitos ou gera dúvida em outros tantos: não é possível saber o que se passa no Mundo dos Vivos.
“O fato que o Hades não está em nenhuma ocasião aberto para a saída de qualquer alma, foi firmemente estabelecido pelo Senhor na pessoa de Abrahão (…) Do homem pobre descansando e do rico em tormento. Nenhuma alma (ressurreta) poderia ser, possivelmente, enviada daquelas regiões, simplesmente, para dizer como são as coisas nas habitações inferiores.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.234).
As observações de Tertuliano, pós-montanismo, acerca do mundo dos mortos, revelam, mais uma vez, a corrente do pensamento patrístico pré-niceno, que o lugar de habitação das almas dos homens é o Hades ou o Sheol (hebraico). Aqui ele reflete a impossibilidade de ressurreição de uma alma para apregoar o cuidado e o arrependimento, a fim das pessoas vivas não irem (após a morte) no lugar de tormento que estava o rico. Para isso, o pai Abrahão disse que havia Moisés (Lei) e os Profetas (Oráculos).
“Todas as almas estão retidas no Hades. Você admite isso? Isto é verdade, ainda que você não admita. Além disso, lá já são experimentados castigos e consolações (…) enquanto aguardam suas alternativas de julgamento.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.234).
Tertuliano fortalece o conceito de não saída do Hades, mesmo que a alma ressuscitada em um corpo [não glorificado, apenas] para pregar e alertar as pessoas que viviam dissolutamente, afinal, elas teriam Moisés (Lei) e os Profetas. Isto também indicava, do ponto de vista de Tertuliano, que nenhuma alma pode sair do Sheol até a ressurreição, sendo o cado de Samuel uma exceção especial, permitida por Deus (1 Samuel 28.12).
“O que deve acontecer em relação àquele intervalo?2 Estaremos dormindo? Mas as almas não dormem, mesmo quando os homens ainda estão vivos. Dormir é um assunto relativo aos corpos, aos quais são tocados pela morte.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.235).
“As almas no Hades sabem muito bem como se alegrar e se entristecer mesmo sem o corpo.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.235).
Tertuliano fala acerca das sensações mantidas no Além-Vida, ainda que ausente de um corpo.
“E esse Juiz pode entregar você para o anjo que deverá executar sua sentença. E ele [o anjo], portanto, pode colocar você na prisão do Hades, da qual não há saída, até que se pague a menor de suas transgressões antes do período que sucede à ressurreição.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.216).
Esta porção de Tertuliano reconhece que há uma disciplina no Pós-Morte. Menção esta que se dá no período pós-montanismo, mas nada sugere que ele não cria assim mesmo antes.
“Nós não supomos que o Hades seja apenas um buraco, nem algum tipo de esgoto subterrâneo do mundo. Ao invés disso, ele é um vasto e profundo espaço no interior da terra. ”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.231).
“Você precisa crer que o Hades é uma região subterrânea. Você, igualmente, precisa manter distância daqueles gnósticos que são orgulhosos demais para acreditar que as almas dos fiéis merecem um lugar no Hades.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.231).
Aqui Tertuliano faz o mesmo ataque que outrora Justino já havia feito, por confrontar os gnósticos que diziam que as almas dos fiéis não desciam ao Hades, e sim, que elas iriam diretamente para o céu (cf. consideração: Lugar Intermediário e a Ressurreição).
“De que maneira, de fato, a alma subirá ao céu onde Cristo já está assentado à mão direita do Pai? Como isso pode acontecer, pois a trombeta do arcanjo ainda não foi ouvida por meio da ordem de Deus (…)? O Céu não está aberto para ninguém. Quando o mundo, de fato, passar, então, o Reino do Céu será aberto.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.231).
Mais uma vez a defesa de que nenhuma alma estaria beatificada no céu.
“Vocês têm um tratado nosso, no qual temos estabelecido a posição de toda [[alma]] está detida e guardada no Hades até o dia do Senhor.”
—Tertuliano (a. 210 – ANF, 3.231).
Parecia que havia um texto normativo entre os pais da igreja que provavelmente servia para combater o conceito gnóstico de alma indo ao céu, negando, portanto, a necessidade de ressurreição.
“Vocês dizem que são as almas perversas que, por fim, são depositadas no Hades. Eu preciso insistir com vocês para que determinem em quais regiões, a dos bons ou a dos maus? Se vocês disserem a dos maus, agora mesmo as almas dos perversos merecem ser destacadas para aquelas habitações. Se, porventura, vocês disserem que é a região dos bons, por que vocês julgam as almas dos infantes e das virgens, os quais eram puros e inocentes, por causa de suas condições de vida, como sendo indignas de tal lugar de descanso?”
—Tertuliano (a. 210– ANF, 3.231).
Esse texto de Tertuliano era para combater a ideia de que o Hades era um lugar apenas ruim, sombrio e de tormentos, pois quando ele sugere “qual região?”, e, portanto, “a boa ou a ruim?”, ele configura que haveria consolo no Hades, pois ainda, insistindo ele, como ficaria a alma dos infantes e virgens que tinham uma pureza inerente. Ao que parece se cria os que infantes não iam para o céu mesmo entre os gnósticos, mas se o Hades é somente um lugar de tormento, como ficariam essas almas, que na análise de Tertuliano, eram puras?
Hipólito, nascido em Roma por volta de 170 d.C., foi um teólogo, historiador e filósofo que se destacou por sua erudição, zelo pela fé.
Um defensor ferrenho da ortodoxia cristã, Hipólito combateu vigorosamente as heresias que ameaçavam a doutrina da Igreja Primitiva. Sua obra teológica abrangente abordou temas como a natureza de Deus, a Trindade, a encarnação de Cristo, a escatologia e o ministério da Igreja.
Por fazer considerações escatológicas, Hipólito acabou tendo que lidar com assuntos que envolviam o Pós-Morte, a Ressurreição e o Juízo Final.
“Mas os justos estão, de fato, detidos no tempo presente no Hades, mas não no mesmo lugar que os injustos. Pois, para essa localidade existe uma descida, em cujo portão nós acreditamos que há um arcanjo posicionado com um exército. E, quando aqueles que são conduzidos por anjos comissionados para cuidarem das almas passam através desse portão, eles não procedem todos para baixo seguindo um mesmo caminho. Ao invés disso, os justos são conduzidos na luz para a direita. E sob cântico dos anjos são ali posicionados, levados para uma localidade cheia de luz (…) Entretanto os injustos são arrastados para a esquerda por anjos que são ministros do castigo (…) essas almas são arrastadas à força como prisioneiros. Chegando ao local determinado circunvizinho ao guehenna. E há aqueles que estão muito próximos ao guehenna e sentem a fumaça quente; ficam tão próximos que é possível ver o terrível e excessivo fogo brilhante e assim estremecem da expectativa do julgamento futuro, já sentido a expectação do poder daquele castigo.”
—Hipólito (a. 205– ANF, 5.222).
Não é possível saber com certeza de onde e como Hipólito possa ter tido tais conclusões, mas estarrecedor são os detalhes narrados por este cristão primevo. Nesta porção textual, Hipólito destaca que há um lugar no Hades circunvizinho ao local chamado guehenna e que, igualmente, é possível observar o fogo brilhante e poderoso daquele lugar. Ainda para Hipólito as almas poderiam sentir a expectação do futuro juízo. Seria esse mais um local que vai além do lugar que estava o rico de Lucas 16?
“Eu penso que já disse o suficiente acerca do assunto: Hades. Lugar em que todas as almas estão detidas até o tempo determinado por Deus. E, então, Ele realizará a ressurreição de todos, não pela transferência das almas, mas por ressuscitar os próprios corpos.”
—Hipólito (a. 205– ANF, 5.222).
Interessante arguição de Hipólito onde ele interpreta o que de fato significa ressurreição que não é a alma ser transferida, mas no fato do corpo ser ressuscitado.
Orígenes de Alexandria (185-254 d.C.) foi um teólogo, filósofo e estudioso da Bíblia, considerado um dos cristãos mais influentes.
Nascido em Alexandria, Egito, ele se dedicou a aprofundar a compreensão da fé cristã por meio do estudo, da escrita e do ensino.
Um erudito prolífico, Orígenes escreveu sobre diversos temas teológicos, incluindo a natureza de Deus, a Trindade, a encarnação de Cristo, a salvação e a escatologia. Sua obra “De Principiis” é considerada a primeira obra de teologia sistemática da história da Igreja.
Ele também foi, talvez, o precursor da Crítica Textual ao produzir a Hexapla com 3 variantes gregas, onde fez várias anotações, tanto acerca do texto quanto da fonte. Por meio dessas anotações mais Paulus Tella (Séc. VII) viria recuperar a originalidade da Septuaginta.
Dentre inúmeras contribuições, este homem também viria trazer observações acerca do Pós-morte. Ainda que nossa catalogação acerca do pensamento dele convirja em apenas um único texto, porém ele não deixa de ser interessante.
“Aqueles que morrem de acordo com a morte comum a todos; estão, por consequência de seus atos feitos quando ainda estavam vivos, organizados de uma forma que são dirigidos à locais diferentes; tais lugares contêm suas distinções baseadas na proporção dos pecados de cada um.”
—Orígines (a. 225– ANF, 5.222).
Orígenes lança luz à questão dos locais das regiões inferiores, com base nos pecados, não está claro no texto que ele inclui todos os homens, até mesmo os santos, é muito provável que não; pois desde tudo que já vimos da visão patrística, os cristãos entendiam praticamente unânimes que os justos iam para um lugar de consolo e luz; porém, Orígenes ao apontar locais baseados na proporção de pecado, indicava que entre os injustos havia vários tipos de locais. Hipólito situa esses locais ao lado esquerdo do Sheol.
Novaciano foi uma figura significativa na história da Igreja primitiva, conhecido principalmente por seu papel no cisma que leva seu nome, o Cisma Novaciano, no século III. Ele nasceu por volta de 200 d.C. e, antes de se tornar uma figura controversa, era um presbítero respeitado em Roma.
O cisma, apenas para que, o leitor não fique demasiadamente curioso, se deu pela sua oposição em readmitir na comunhão os cristãos que, durante a perseguição de Décio, teriam sacrificado aos deuses ou obtido certificados falsos que atestavam isso. Novaciano os admitiria, apenas após severa penitência3. Devido a sua posição, ele rompe com o bispo de Roma, sendo conhecido como um antipapa.
“O que encontra debaixo da terra não está em si mesmo vazio da distribuição e arranjo de potências. Pois existe um lugar onde as almas dos justos e dos injustos são levadas, conscientes dos horrores antecipados do julgamento futuro. ”
—Novaciano (a. 225– ANF, 5.612).
Nada de muito novo do que já vimos da visão dos pais da igreja pré-nicenos, mas vale mencionar mais essa figura importante daquele período. Aqui, ele destaca com mais ênfase a posição geográfica do Mundo dos Mortos.
O trabalho de Vitorino marcou uma transição importante no cristianismo, de um corpo predominantemente de textos gregos para a incorporação e desenvolvimento de uma teologia expressa em latim. Ele ajudou a estabelecer um fundamento para futuros teólogos e escritores latinos, como Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Sua abordagem ao Apocalipse, que enfatizava tanto a interpretação literal quanto a simbólica, influenciou a exegese bíblica que viria depois.
“Portanto, o “Altar de Bronze” faz referência à terra, que está sobre o Hades; este por sua vez é uma região distante de castigo e fogo. Contudo, é um lugar de descanso para os santos. Neste local, de fato, os ímpios veem os justos, mas não podem ser deslocados até onde eles estão. ”
—Vitorino (a. 280– ANF, 7.351).
Vitorino confirma a visão patrística do Além-Vida, faz sua interpretação do “Altar de Bronze”, uma vez que era comentarista do livro de Apocalipse e, como já sabemos, sua interpretação conciliava o que é literal e o que é simbólico.
Encerramos aqui as principais citações, principalmente, porque em nossas análises muitas delas ficariam repetitivas, quase que sem nenhuma outra novidade; portanto, elencamos as, que julgamos, principais. Ainda poderia citar outros nomes importantes que mantiveram a mesma linha de pensamento como Metódio, Cipriano, Fócio, Alexandre de Alexandria, Lactâncio e Arnóbio, fora os tratados estabelecidos que também contemplavam as mesmas averiguações como o “Tratado contra Novaciano”, e o “Tratado sobre o Rebatismo”, apenas como alguns exemplos.
Não encontramos nenhuma linha patrística pré-nicena que defenda abertamente a ida das almas para o céu diante de uma contemplação beatífica; todas as deliberações sobre essa crença se derivou da linha de pensamento gnóstica, o que no mínimo nos deveria chocar, uma vez que tais cristãos primitivos estavam mais próximos da vivência apostólica, e que, se, a alma ir diretamente para o céu após a morte, fosse uma crença aberta entre os apóstolos, no mínimo deveria ter havido um debate ou mesmo linhas de pensamentos divergentes entre os próprios pais da Igreja.
E entre os mais notáveis, como Clemente de Roma, Irineu, Justino Mártir, Tertuliano e Orígenes, vimos um alinhamento unânime sobre o Hades ser o lugar de todos os mortos.
O estado intermediário era de fato a crença patrística, com o Hades servindo como o local de habitação de todos os mortos. E se estivermos alinhados com os primeiros pais (os apostólicos e os apologistas) conforme as conclusões a que chegaram, deveríamos considerar a crença de que, a alma dos justos, após a morte, vai logo para o Céu como uma ideia não cristã, mas sim gnóstica. Ou seja, o conceito de que os santos estão imediatamente na presença direta de Deus contradiz a doutrina da ressurreição dos mortos que seria o recurso que habilitaria, por fim, a beatificação.
Mas, tal averiguação deveria nos abismar com o pensamento cristão de hoje. A pergunta que nos cabe é: o entendimento cristão moderno, está mais alinhado com o cristianismo primitivo ou com o gnosticismo?
Vamos apenas verificar um pouco como a visão beatífica ganhou contornos no cristianismo pós-niceno e por qual motivo foi necessário a sua promulgação.
A deliberação do assunto ganhou forma doutrinaria a partir do Concílio de Niceia II no ano de 787 d.C. Embora este Concílio teve por objetivo tratar da liturgia e do uso dos ícones nos cultos, assim como as imagens dos santos e da virgem Maria.
Entretanto, houve espaço neste Concílio para fazer afirmações ao estado do Pós-morte.
“(...) por extensão, o ensinamento tradicional da Igreja de que os santos, que já haviam falecido, podiam interceder em favor dos cristãos que ainda estavam vivos ”. (História dos 21 Concílios da Igreja – de Niceia ao Vaticano II p. 52 – Edições Loyola).
— Christopher M. Billeto.
Conforme Billeto, deixa bem claro, foi neste Concílio que a veneração aos ícones foi imposta, e foi igualmente declarado hereges os iconoclastas,4 sendo dirigido a eles 4 anátemas. A partir de então as relíquias dos mártires deveriam ser exibidas nas igrejas. Note que, ao mesmo tempo, em que as imagens eram impostas, também era imposto, de forma oficial, a compreensão de que os santos já estavam na presença de Deus; pois neste Concílio foi declarado que eles podiam interceder aos vivos junto a Deus.
Mas, como isso seria possível se tais almas estivessem no Hades, uma vez que não estariam diretamente diante da presença pessoal de Deus? Era, portanto, necessário uma ruptura com o ensino do “Estado Intermediário”, sob o risco da intercessão dos santos não poder ser incorporada como doutrina.
A concepção do Pós-morte por definição deveria mudar para caber a doutrina da intercessão dos santos. Niceia II seria, portanto, o “estopim histórico” para dali em diante a definição patrística, de as almas aguardarem a ressurreição em um estado intermediário no Hades, ser combatida, rechaçada e anatematizada.
A Visão Beatífica, a experiência direta da face de Deus no Céu, foi um tema que começava a ser debatido cada vez mais com mais intensidade. Contudo, a primeira vez que o assunto foi oficialmente discutido em um Concílio Ecumênico foi no Concílio de Latrão IV, realizado em Roma em 1215.
Embora a Visão Beatífica não tenha sido o tema principal do Concílio, ela foi mencionada em vários decretos e documentos conciliares.
O decreto mais importante sobre a Visão Beatífica foi De Fide Catholica (“Sobre a Fé Católica”), que definiu que a alma dos santos “desfruta da visão e fruição imediata de Deus, que é a recompensa essencial da bem-aventurança”.
O Concílio de Latrão IV também abordou a questão de quando a Visão Beatífica é concedida aos santos.
O Concílio ensinou que a Visão Beatífica é concedida aos santos imediatamente após a morte, se eles morreram em estado de graça.
A discussão sobre a Visão Beatífica no Concílio de Latrão IV foi um marco de ruptura definitiva que afetaria substancialmente a teologia católica.
O Concílio ajudou a definir a crença da Igreja na Visão Beatífica como uma verdade de fé e a esclarecer a natureza dessa experiência.
É importante notar que nem todos os cristãos de profissão não romana, concordam com a doutrina da Visão Beatífica, apesar de os protestantes em sua maioria, de origem reformada, crer; algumas tradições cristãs, como a Ortodoxa Oriental, não acreditam na Visão Beatífica, exceto que ela é concedida aos santos apenas no final dos tempos, após o Juízo Final.
Aquilo que teria sido embrionário no Concílio de Niceia II agora ganha força, em Latrão IV.
Embora a Visão Beatífica, assim como em Latrão IV, não tenha sido o tema central deste Concílio, as discussões teológicas sobre a natureza da alma, a vida após a morte e a santificação contribuíram para uma compreensão mais profunda dessa crença.
A rejeição da reencarnação, discutida no Concílio, acabou por fortalecer a base teológica para a Visão Beatífica como destino final da alma. Assim, o Concílio reafirmava e confirmava aquilo que tinha sido declarado no Concílio de Latrão IV.
Embora o Concílio de Latrão não tenha decretado sozinho a recepção das almas no Céu, ele, no entanto, sistematizou e oficializou essa crença. Essa decisão se baseou em um longo processo teológico que já vinha se desenhando em concílios anteriores.
O Concílio de Niceia II (787 d.C.), já havia afirmado que os santos desfrutavam da presença imediata de Deus. A intercessão dos santos através das preces que lhes eram dirigidas, defendida nesse Concílio, só poderia substantificar-se como doutrina, se eles estivessem diretamente na presença de Deus, de outro modo como seria possível fazer qualquer rogo a eles, estando eles presos — mesmo que num lugar bom — no Hades? Essa crença no Céu aberto como destino das almas em estado de graça, mesmo antes da ressurreição, contribuiu para o dogma da intercessão aos santos, em especial da virgem Maria. Seguramente, sem tal afirmação, nem mesmo a prece à virgem feita pelos católicos romanos poderia ser praticada hoje. Ou dogmatizava, ou ruiria todo um sistema de crença. Já sabemos o final dessa história.
Finalmente, no Concílio de Florença (1439 d.C.), esse ensino foi promulgado como doutrina oficial da Igreja Católica. Sem que houvesse mais quaisquer dúvidas ou abertura para mudanças. O que se iniciou em Niceia II culminaria em Florença.
Importante destacar que alma beatificada para a Igreja Romana é a alma em “estado total de graça”, o que isso quer dizer de fato? Que tal alma nessas condições não iria para o Purgatório. Entretanto, as que estivessem no Purgatório e, por fim, fossem purificadas, tais não seriam, por assim dizer, ressuscitadas, e sim beatificadas no Céu. A diferença é que pode haver almas que vão diretamente ao Céu sem a necessidade do Purgatório.
Embora tudo isso não negue, de fato, a ressurreição, porém, a torna irrelevante; afinal de contas, se já estou ante a presença santa de Deus, de forma direta, a ressurreição não passaria de um “cosmético”, porquanto o mais importante, a despeito de qualquer coisa, a alma já desfrutava.
Reparem que toda essa cena doutrinaria estava divergindo exponencialmente dos primeiros pais.
Não há conciliação na crença dos cristãos pré-nicenos com os Concílios Ecumênicos. Percebam que há uma evolução de mudança que não combina nenhum pouco com o pensamento mais remoto de nossos irmãos.
Não é o intuito deste artigo trazer um estudo bíblico do Estado Intermediário, mas mostrar como os cristãos primitivos entendiam a vida após a morte.
Berengário de Tours foi um teólogo francês do século XI, foi acusado de heresia por negar a doutrina da visão beatífica. Berengário contestou várias doutrinas da Igreja Católica Romana, incluindo a visão beatífica. Ele defendeu a ideia de que as almas dos justos não contemplavam a Deus diretamente até a ressurreição dos mortos, uma posição que foi considerada herética. Berengário foi submetido a várias acusações e disputas teológicas durante sua vida devido a suas visões divergentes da ortodoxia católica romana, entre elas a transubstanciação.
O Papa João XXII (1316-1334) gerou grande controvérsia ao questionar a visão beatífica, crença central na Igreja Católica que define a contemplação imediata e direta de Deus pelas almas santas após a morte.
SERMÕES 1331–1332
Em três sermões pronunciados na Catedral de Avignon, entre 1o de novembro de 1331 e 5 de janeiro de 1332, ele sustentou a opinião segundo a qual as almas dos justos, inclusive depois de sua perfeita purificação no purgatório, não gozam da visão beatífica de Deus.
Só depois da ressurreição da carne e do Juízo Final é que elas seriam elevadas por Deus à visão da divindade.
Colocadas “sob o altar” (Ap. 6. 9), as almas dos santos seriam consoladas e protegidas pela humanidade de Cristo, mas a visão beatífica seria adiada até a ressurreição dos corpos e o Juízo Final (Marc Dykmans em Les sermons de XXII sur la visión béatifique, Universidade Gregoriana, Roma, 1973, publicou os textos integrais pronunciados por João XXII; cfr. Também Christian Trottman, La vision béatifique. Des disputes scolastiques à sa définition par Benoît XII, Ecole Française de Rome, Roma, 1995, pp. 417-739).
No começo do século XIV, João XXII, impugnou esta tese em seu magistério ordinário, defendendo que as almas não iam diretamente ao céu.
A Igreja Católica acerca de João XXII viria escrever, mais tarde, por meio do cardeal Schuster o seguinte: “tem graves responsabilidades ante o tribunal da história (…)”, porque “ofereceu à Igreja inteira o espetáculo humilhante dos príncipes, do clero e das universidades que voltaram a colocar o Papa no reto caminho da tradição teológica católica, pondo-o na dura condição de ter que se desdizer Lezioni di storia eclesiastica. Benedictina Editrice, Roma, 1996, pp. 116–117).
O Cardeal, ao pontuar: “desdizer”, queria clarificar, como tinha sido, na visão de Roma, uma tragédia os pronunciamentos — supostamente heréticos — do Papa, e que seria necessário “remover suas declarações”; o que veio a se concretizar mais tarde.
João XXII, entendia que somente após os tratos divinos, e mais precisamente de acordo com o Evangelho de João, culminando com a ressurreição do Último Dia (Fim do Milênio e início do Juízo Final) é que as almas teriam por fim a experiência beatífica.
Fournier, que adotou o nome de Bento XII (1335–1342) foi o papa que o sucedeu, e revogou o pronunciamento de João XXII, que havia impugnado em seu magistério ordinário, tornando a declaração “heterodoxa”, e considerada heresia pela opinião majoritária da Igreja de Roma.
Mesmo sem uma bula oficial, as ideias de João XXII sobre a visão beatífica tiveram um impacto significativo na teologia e na história da Igreja.
Apesar de a bula Quod non est, emitida por João XXII, tratar diretamente do evento da morte de Jesus, fundamenta que Cristo não ascendeu diretamente ao Céu após sua morte. Indiretamente, ela sugere que as almas primeiro passam pelo Hades. Jesus, como o Primogênito dentre os mortos, serviu como exemplo máximo do que ocorreria com seus discípulos. Assim, fica implícito na bula que a visão beatífica enfrentaria desafios para encontrar respaldo adequado.
Embora as divergências no campo da ortodoxia ganharia contornos mais elevados entre os pais após o Concíclio de Niceia I, não podemos desprezar que o pensamento cristão mais remoto, não via o Céu como destino direto após a morte, ainda que isso machuque nossos sonhos, não era este o pensamento primitivo; ao contrário, tal conclusão vinha dos gnósticos.
Os pais pré-nicenos guardavam a ortodoxia do Estado Intermediário; não por crenças particulares, mas porque eles entendiam muito bem a ressurreição dos [e de entre os] mortos. Sabiam o quão caro era a fé fundamentada na esperança gloriosa da ressurreição. Negar o pensamento de grandes vultos do cristianismo primitivo, como Irineu, Justino e Tertuliano, é negar a origem cristã pela qual esses homens pelejaram.
De acordo com esses mais remotos cristãos, não sendo mais remotos, apenas que os apóstolos, dizer que a alma vai diretamente para o Céu, não passa de um ensino enganoso cuja origem não é apostólica, tampouco cristã, e sim gnóstica. Gostando disso ou não, essa é a realidade daquele período, e a história não pode ser negada.